segunda-feira, 28 de março de 2011

Pai de verdade


Feche a porta, sente aqui do meu lado.

Prometo que não vou gritar. Vou falar baixo, ao menos dessa vez. Vou modular minha voz, prometo.

Eu não fugi de você, apenas te dei de presente a minha ausência. Sabemos que já fazia muito tempo que minha presença não lhe acrescentava muita coisa.

Tudo bem, você estava grávida e coisa e tal, mas, convenhamos, você ficou melhor sem mim. E tenho certeza que ele é muito melhor pai do que eu teria sido.

Não melhor pau, mas certamente melhor pai.

Crianças precisam de bons exemplos, e para isso eu não sirvo.

Aliás, não sirvo para muita coisa, não sirvo para a maior parte das coisas, mas sirvo menos ainda para bom exemplo.

A menina sabe que ele não é seu pai de verdade?

Melhor assim, nunca conte pra ela. Deixe que ela guarde na memória a imagem de um pai bom caráter, mesmo que esse pai não seja o seu pai de verdade.

Se bem que dizem que pai é quem cria, não é mesmo?

Então pronto, resolvido o problema. Ele é o pai.

Foi ele quem registrou a menina, não é mesmo?

Então pronto, resolvido o problema. Ele é o pai.

Prometo que nunca vou requerer minha paternidade, mesmo que um dia ela ganhe o Big Brother.

Não, não larguei nada daquilo que você não gosta e te fazia sofrer.

Ainda uso aquilo tudo, só que agora em maior quantidade.

Muito obrigado, mas não estou precisando de dinheiro. Não foi por isso que lhe telefonei, não foi por isso que pedi para que você viesse até aqui.

É que tenho andado nervoso, e me lembrei que nada me acalmava mais do que estar perto de você. E, lhe digo, a sensação é boa mesmo. Incrível como mesmo depois de tanto tempo, ficar perto de você continue a me fazer tão bem.

Eu quase fodi com a sua vida, não é mesmo?

Imagino que você deva ter sofrido pra cacete, sofrido pra caralho.

Eu também sofri, acredite. Mas sempre soube que, mais cedo ou mais tarde, você ficaria melhor longe de mim.

Já faz o quê, treze anos?

Ela deve estar enorme!

É parecida com você? Tomara! Mas, caso tenha puxado minhas infelizes características físicas, deixarei um presentinho para que ela possa fazer uma cirurgia e corrigir as orelhas de abano quando lhe parecer conveniente.

Ela não puxou as minhas orelhas? Melhor assim. Poderá fazer melhor uso do meu presentinho.

Bom, eu tenho que ir. Prometo que não vou lhe procurar mais. Deixarei você e sua família viverem em paz, na paz que vocês merecem.

Só peço que você entregue isso a menina, quando ela já tiver idade suficiente para fazer bom uso deste presentinho.

O que é?

Nada demais, um bilhete premiado da loteria. Bastante dinheiro, pode ter certeza. Saque o prêmio e deixe numa conta no banco para ela. Quando ela crescer e puder fazer uso do meu presentinho, diga que foi o padrinho dela que deixou, o padrinho que morreu antes mesmo dela nascer.

É sério, pegue o papel, quando chegar em casa vá na internet e confira, é bastante dinheiro.

Claro que você pode aceitar, permita que eu faça pelo menos uma coisa certa na minha vida.

Não, você não precisa fazer isso, não foi por isso que eu te chamei aqui. Eu não estou comprando mais uma noite ao seu lado. É para a minha filha. Ou melhor, para a sua filha. Para a filha dele. Pai é quem cria, não é mesmo?

É claro que eu adoraria, nunca tive mulher igual a você, de verdade! Tive várias outras antes, durante e depois de você, mas nenhuma sequer parecida.

Que bom que você sente o mesmo em relação a mim. É como eu lhe disse, ele pode até ser melhor pai, não melhor pau.

Bom, já que você insiste, tenhamos agora, depois de mais de treze anos, a nossa noite oficial de despedida.



No dia seguinte ele realmente foi embora e nunca mais voltou.

E não durou muito tempo além daquela noite, eram tantos os seus excessos, que não precisaria ser cartomante para prever o seu desfecho.

O outro, o melhor pai, estranhou as crises de choro que a mulher teve durante semanas, mas que com o passar dos dias acabaram arrefecendo. Dizia que não era nada, era coisa dela, coisa passageira, já, já estaria bem.

Chegou a suspeitar de algo, mas deixou de lado quando soube que sua esposa estava novamente grávida. Grávida de um menino.

Criou-o também como se fosse filho seu. Aliás, este segundo, acreditava realmente que era filho seu.

Sequer estranhou o fato do menino não ter nada de parecido consigo.

E mesmo tendo conhecido o homem anterior da sua esposa, pai verdadeiro das duas crianças, não associou a imagem do menino a dele. Talvez percebesse alguma coisa quando o menino se tornasse maior, pois a semelhança era assombrosa.

Nem mesmo as orelhas grotescas do menino, lhe despertaram qualquer suspeita.

Só estranhou quando, anos mais tarde, a mulher apareceu com um montante absurdo de dinheiro. Mas, mesmo estranhando, ficou feliz por terem recursos para pagar a faculdade de ambos os filhos, encaminhá-los muito bem na vida e, mais do que isso, poderem oferecer ao menino a cirurgia plástica que corrigiria as dimensões desproporcionais de suas orelhas.

Mas o menino nunca quis a cirurgia. Tinha orgulho das orelhas. Não sabia dizer por que, mas orgulhava-se delas como se fossem uma marca só sua, uma herança que, por mais feia que fosse, tinha orgulho de ostentar.

A mãe amava aquelas orelhas obscenas.

E assim, marido e mulher envelheceram juntos, sempre um ao lado do outro.

E em todos os dias da longa vida que teve, ela acordou feliz por saber que tinha escolhido para os filhos o melhor pai.

E em todas as noites da longa vida que teve, ela dormiu triste por saber que tinha abdicado para sempre do melhor pau.

2 comentários:

Bruna Rafaella disse...

Hahahhahaaa...
mulher é foda né?
então ela tava chorando por causa disso?

muito bom!!!

hahahhaaa....

adorei!

jean mafra em minúsculas disse...

bom, david.