sexta-feira, 7 de maio de 2010

Cruel

Avisos paroquiais importantíssimos:

1 – O texto é longo, mas os diálogos são curtos. Mesmo sendo um diálogo, não deixa de ser um conto;

2 – Este não é um texto engraçado como normalmente eu procuro escrever para este espaço;

3 – Se alguma vez você já se sentiu ofendido(a) com algo que eu tenha escrito aqui, por favor, não leia este post. Mas volte, você é bem-vindo, apenas aguarde o próximo, ele não tardará por vir;

4 –Ainda que metaforicamente, manifestar o que eu penso não é desrespeitar o que você pensa;

5 – Não diga que eu não avisei.


_Então é assim?

_Pois é. Decepcionada?

_Um pouco. Sei lá, esperava algo mais iluminado, mais branco, mais claro.

_É, eu sei.

_Sabe? Ah, claro. Onipresente, onisciente...

_Pois é...

_Eu fiz alguma coisa de errado?

_Algumas, mas nada grave.

_Isso aqui é alguma espécie de juízo final?

_Não exatamente. Você não está em julgamento. Digamos que seja o último ato de um número de mágica, e caso você tenha interesse, eu te conto o segredo do truque.

_Que truque?

_Qualquer coisa. Se você tiver alguma curiosidade, dúvida e quiser a resposta, pode perguntar que eu respondo. Aliás, dúvidas eu sei que você tem. Várias. Mas escolha algumas, estou de bom humor.

_Por que doeu tanto?

_Ônus do bônus.

_Que bônus?

_A beleza da criação, da minha criação.

_A espécie humana? Eu?

_A beleza não era sua, era do câncer.

_Eu fui cobaia para que você observasse o câncer crescer?

_Cobaia não, alimento. Vocês não criam cobras venenosas, perigosas, letais, alimentando-as com inofensivos camundongos?

_Ah, claro. A cobra, você não gosta da cobra, a velha mágoa da maçã proibida.

_Nada disso, eu até gosto da cobra, e a maçã é uma das minhas frutas preferidas, só perde para a carambola. Só estou fazendo a analogia. Eu entendo a beleza que vocês percebem na cobra, ela tem um certo charme meio hipnótico. E entendo também que vocês a alimentem com os pobres camundongos. Eles não tinham mesmo muita utilidade.

_E é isso que você pensa da gente? Algo sem muita utilidade, como um camundongo?

_Não, vocês têm utilidade. Não tanta quanto acreditam ter, mas alguma sempre têm.

_E se eu não tivesse fumado, teria escapado do câncer?

_Se você não tivesse fumado não teria conhecido o grande amor da sua vida. Ele foi até você para acender o seu cigarro, lembra?

_É verdade.

_O que seria melhor, nunca ter fumado, ter escapado do câncer e morrer dois anos depois, sozinha, num acidente de carro, ou antecipar em vinte e quatro meses a sua morte, mas ter vivido trinta e dois anos ao lado do homem que você sempre quis? A propósito, para deixar você mais tranqüila, ele nunca te traiu. Por mais que frustre o seu discurso de uma vida inteira, os homens não são todos iguais. Sei que você desconfiava da Flávia, mas ele nunca teve o menor interesse nela. Ele sempre teve olhos exclusivamente voltados para você, se apaixonou pelo jeito que você tentava chamar atenção de algum garçom que tivesse um isqueiro para acender o seu cigarro, e aquele seu charme que só ele percebeu, nunca arrefeceu no coração dele.

_Mas ele não fumava.

_Ele saiu do bar, atravessou a rua correndo, comprou o isqueiro na padaria e voltou todo esbaforido, torcendo para que ninguém tivesse te emprestado um isqueiro. Um outro cara ia acender o seu cigarro, mas eu achei tão bonitinho o empenho do seu marido, que derrubei uma bandeja em cima do outro cara.

_E eu sempre fui tão ciumenta...

_E ele sempre te amou tanto. Você não faz ideia de como ele está sofrendo agora. Mais do que você no auge do câncer.

_É meio egoísta essa sua mania de brincar com as pessoas como se fossem marionetes, não? Meio narcisista.

_ Mas isso já estava claro no meu primeiro mandamento.

_Claro, te amar sobre todas as coisas.

_Pois é...

_Eu vou reencontrá-lo quando ele morrer?

_Não. Ele nunca duvidou da minha existência, você sim. Trouxe você aqui por desaforo, para mostrar como você errou. Quando ele morrer vai desaparecer direto. Não vai precisar se sentir culpado mais uma vez.

_E a vida eterna?

_Só a minha.

_Que sensação ruim, nunca me senti tão frustrada. Por que não estou chorando agora?

_Por que esta culpa que você está sentindo não dá para ser lavada.

_Mas tinha que doer tanto? Tinha que ser de câncer?

_Não, poderia ter sido enfarto. Mas o câncer é mais bonito. Você não faz ideia do que é ver o câncer crescendo, você se alimentando de coisas saudáveis para tornar suas células mais resistentes, e ele se alimentando destas mesmas células. É lindo, você não imagina como é bonito ver a velocidade com que ele vai se impondo, tomando conta de cada espaço saudável. É lindo, lindo, lindo.

_Mas minha garganta parecia que queimava, parecia que estavam cortando ela por dentro, devagar, com uma faca cega.

_Eu sei.

_Onipresente, onisciente...

_Pois é...

_Isso é maldade.

_Não exatamente. É uma espécie um pouco ácida de entretenimento, mas não chega a ser maldade.

_Brincar com a vida alheia para se entreter não é maldade? Um enfarto seria mais digno, mais rápido.

_A vida não era alheia, era minha. Lembra quantas vezes você espirrou meio tubo de SBP em cima de uma única barata e depois ficou parada vendo ela se debater de cabeça pra baixo, agonizando, as pernas balançando nervosas, agitadas, depois diminuindo a velocidade, até que uma das pernas faz um único movimento praticamente involuntário e pára pra sempre? Se você tivesse pisado na barata teria sido mais digno também, mais rápido. Mas você ficou parada olhando ela se debater até não poder mais suportar a asfixia do veneno.

_É verdade, havia alguma beleza naquilo. Estranho, mas talvez eu entenda você.

_Eu sei que você entende. Talvez não goste de admitir, mas eu sei que entende. Alguns sufocam baratas, outros incineram formigas com lupas, mas todos gostam dessa beleza que a crueldade tem.

_Tudo bem, sei da sua onisciência, mas saber não é necessariamente entender. Será que você me entende mesmo?

_Certamente. Não esqueça, você é minha imagem e semelhança.

4 comentários:

Lamaringoni disse...

Há beleza nesse teu texto. Creio que é do mesmo tipo que a que você descreveu: fria e cruel.

O fato é que gostei. ;)

beijinho!

Clarice disse...

Uma perfeita análise sobre a essência humana. Genial Mattos!

Josué Mattos disse...

Gostei muito deste texto (acho que para seu espanto..)

Mas não achei engraçado.. ser engraçado é o primário do humor.. Zorra Total é engraçado, humor para as massas.. (para quem passou do primário do humor, não tem graça nenhuma..)

Este texto é irônico, e ironia, na minha opinião, é a mais refinada forma de humor, é a pós-graduação do humor, e muitas vezes, você é professor de ironia..

O problema é que ironia não é para massas, por isso, às vezes ofende, coloca no leitor o sorriso, não as gargalhadas e faz do texto inesquecível.. e ás vezes, a ironia passa do ponto da acidez, e causa úlceras.. tem que ser na dose certa..

É minha opinião, não precisa concordar...

Parabéns! Pela ironia e acidez na dose exata do texto.

Beijo

jean mafra em minúsculas disse...

adorei, david. lindo texto. ótimos diálogos, como sempre. estranha, e interessantíssima, essa sua (quase) fixação em deus.

foi bom te ver indo em outra direção, mas mantendo "tua pegada".

parabenzão!!!


(por fim, teu texto é muito teatral - isso ficaria ótimo, feito por dois bons atores)