quinta-feira, 10 de junho de 2010

Carmenere


Havia ficado furiosa com o guardanapo que recebera e com os garranchos que haviam nele escrito. Eram até parecidos com os garranchos dele, mas sabia que dele não havia como ser.

Há pouco mais de três meses, o vinho tomado além da conta o levara a cruzar o sinal que proibía-o taxativo, Fique aí, te proíbo de passar pela autoridade que o vermelho me conferiu. Mas aquela taça a mais do delicioso carmenere o fez desconsiderar a autoridade do sinal e o decreto do vermelho. Como castigo, uma Kombi em sentido transversal fez dele patê.

Morreu minutos após ter tido nos braços dela a noite mais doce e linda que jamais imaginara ter. Não preciso casar contigo, embora adoraria te ouvir pedindo minha mão, mas se souber que me desejas como tua mulher agora, já me será felicidade suficiente, ainda que nunca cheguemos a trocar alianças, disse ela.

Ele sorriu sem dizer nada e alagou mais uma vez a sua taça com o delicioso carmenere. Alagou pela última vez.

No enterro ficou admirado com a quantidade de pessoas que choravam a sua perda, não se sabia tão bem quisto. Quase teve raiva do vinho, mas se pudesse tomava mais um gole, só mais unzinho de despedida. E foi na vontade deste gole inacessível às almas, que a viu no cantinho da sala, chorando contida uma dor que ninguém ali sentia. Era uma dor só dela, cortante, ardida e gelada.

Iniciou, então, sua empreitada angustiante ad infinitum.

Como os amigos haveriam de contar em piadas de boteco, entre cachaças que tentam apagar a dor da perda das melhores piadas e do abraço mais sincero, se voltasse para se comunicar, voltaria encarnado num Exú.

Baixou em vários terreiros. Em vão. Ela não acreditava em Deus, que dirá em espíritos de esquerda.

Na missa de sétimo dia, inspirou o discurso do padre, mas ela não percebeu. Não acreditava em Deus, e se fora à Igreja, foi para imaginar que aquela seria ainda uma maneira de estar perto dele.

Fez com que seu cachorro latisse no exato momento em que, entre uma taça e outra de outra garrafa daquele mesmo carmenere, Jobim cantava “deixe Dindi, que eu te adore Dindi”. Ela cantou para si, “Se um dia você for embora, me leva contigo Dindi”. Levantou e levou o labrador à rua, mas ao contrário do que imaginara, ele não queria visitar os postes que todas as noites sua bexiga canina solicitava a presença.

Fez o rádio relógio acordá-la duas horas antes do programado, com Chico sussurrando: “por que era ela, por que era eu”. Desligou o aparelho da tomada e voltou a rolar na cama, fingindo para si mesma que estava dormindo o sono que aquela ausência lhe havia furtado.

Aceitou com profundo contragosto, e deixando bastante claro que voltaria em meia hora, ir com os amigos àquele bar ali da esquina. Mas arrependeu-se quando o garçom veio trazer-lhe o guardanapo com tais garranchos. Minutos antes, o rapaz que rabiscara o guardanapo chamara a atenção de todos no bar por ter sido acometido por uma tremura nervosa e estranha.

Amassou o guardanapo e jogou-o no chão. Saiu em passos firmes, ainda que nervosos.

Já em casa, foram duas as garrafas daquele mesmo carmenere.

O rapaz era médium, mas ela não sabia.

Contudo, doeu-lhe fundo não acreditar em Deus quando, antes de revoltar-se, ler, “Te desejo como minha mulher pra sempre. Queres casar comigo?”

5 comentários:

Shuzy disse...

Caraaaaa...
Esse é triste ¬¬

Mari M disse...

Tragicômico ;) Bem do jeitinho que tu gostas..

Anônimo disse...

Lindo, beijos, Xixa.

Nayana disse...

doeu.

Mari M disse...

Ansiosa pelo próximo post