sexta-feira, 13 de maio de 2011

Saudades dela


06:00, toca o despertador, ele olha para o aparelho com raiva por ter interrompido o sono que custou tanto para chegar. Sentiu saudades dela. Lamentou não estar com dor de garganta, com uma crise de sinusite, com uma febre, uma diarreia, o que fosse, mas que fosse suficiente para justificar a falta no trabalho. Sentiu saudades dela. Foda-se, disse para si mesmo, virou para o lado e voltou a dormir. Antes, claro, estraçalhou o despertador na parede. Rolou na cama por mais cinco minutos, depois levantou preocupado com os gatos, vá que um deles cortasse as patinhas nos cacos do despertador estilhaçado. Gatos são espertos, malandros, sabem se mover em áreas perigosas com bastante cuidado, com leveza, mas até eles andam com passos sonolentos as 06:00 da manhã. 06:05, que seja. Recolheu os cacos, jogou-os no lixo do banheiro. Sentiu saudades dela. Abriu a geladeira, nada pra comer. Sentiu saudades dela. Mas tinha cigarro e uma cerveja. Sentiu saudades dela. Cerveja tem trigo, trigo é cereal, praticamente um sucrilhos, disse para si mesmo. Sentiu saudades dela. Acendeu o cigarro. Sentiu saudades dela. Abriu a cerveja. Sentiu saudades dela. Voltou para a cama com a cerveja nas mãos e o cigarro entre os lábios, antes, passou na mesa da sala e pegou o pacote de amendoim que ainda abrigava um terço do seu conteúdo, abandonado por ele na metade do segundo bloco do Jô Soares. Sentiu saudades dela. Que espécie de mentecapto abandona alguém como ela?, pergunta para si mesmo enquanto tentava, em vão, fazer círculos com a fumaça do cigarro. Engasgou-se com a fumaça, cuspiu um gole de cerveja em cima do edredon encardido, a espera de um banho há quase três invernos. Sentiu saudades dela. Pegou o controle remoto na cabeceira da cama, ligou a televisão e ficou vendo uma receita de doce de leite com côco no Globo Rural. Uma tiazinha feia e gorda com sotaque do interior paulista era quem dava as dicas de culinária. Sentiu saudades dela. Bem que eu poderia enfartar agora, fulminantemente, pensou enquanto dava mais uma tragada, depois de parar de tossir pela tentativa frustrada de imitar os círculos de fumaça que a Juliette Lewis fazia com tanta facilidade em Natural Born Killers. Ficou pensando no que diria no trabalho, já que estava decidido que, aquele dia, não sairia de casa. Sentiu saudades dela. Cigarro é um assassino de merda, se pilotasse na fórmula um chegaria depois do Rubinho, pensou enquanto acendia outro. Sentiu saudades dela. Bem que eu poderia ter uma arma. Sentiu saudades dela. Mas acho que se pular da janela, até que dá para morrer. Se bem que, do quarto andar, o mais provável é que o máximo que eu consiga seja uma cadeira de rodas. Sentiu saudades dela. Televisão de merda, o único programa que presta só começa daqui a cinco horas. Bem que poderia ter um canal que passasse Os Simpsons 24 horas por dia. Sentiu saudades dela. Lembrou da janela dos fundos do apartamento, havia uma obra ali, com um pouquinho de coordenação, poderia pular em cima dos vergalhões de aço apontados para o céu. Com certeza, caindo do quarto andar eles vão me atravessar, ainda que não morra na hora, uma hemorragia interna qualquer pode resolver o meu problema, tétano, que seja, mas acho que pulando ali eu não escapo. Sentiu saudades dela. Vou pular pelado, deve dar um pouco mais de dramaticidade, pensou enquanto conferia quantos cigarros ainda tinha no maço. Sentiu saudades dela. Como pude perdê-la? Como pude ser tão descuidado a ponto de ela partir com outro, com um qualquer? Acendeu os dois últimos cigarros ao mesmo tempo. Virou o resto de cerveja que ainda tinha no fundo da garrafa verde. Adoro as holandesas, pensou e deu um arroto de volume suficiente para aposentar os despertadores de todos os vizinhos do prédio. Sentiu saudades dela. Levantou-se, tirou a roupa, olhou-se no espelho e disse observando a imagem refletida, Essa barriga não vai fazer falta pra muita gente. Sentiu saudades dela. Começou a chorar convulsivamente, como uma criança, como um bebê com fome, um bebê com cólicas assassinas. Sentiu saudades dela. Assoou o nariz. Sentiu saudades dela. Caminhou até a janela dos fundos. Sentiu saudades dela. Com alguma dificuldade, apoiou a mão na beirada da janela e conseguiu ficar em pé sentindo o ar gelado da manhã no seu corpo nu. Sentiu saudades dela. Olhou pra baixo e sorriu. Sentiu saudades dela. Não vou escapar. Sentiu saudades dela. Melhor assim. Sentiu saudades dela. Olhou para o alto, o céu estava azul apesar da chuvinha fina. Sentiu saudades dela. Respirou fundo. Sentiu saudades dela. Soltou uma mão. Sentiu saudades dela. Soltou a outra. Sentiu saudades dela. Brincava de se equilibrar somente com os pés na janela aberta. Sentiu saudades dela. O telefone tocou, deveria ser notícias dela, ficou eufórico, Ela vai voltar, ela vai me perdoar, gritou sorrindo, mesmo sem saber se era para isso mesmo que o telefone o requisitava. Quando tentou segurar com uma das mãos na beira da janela para voltar ao interior do quarto e atender o telefonema que, se deus quisesse, traria notícias dela, escorregou e despencou do quarto andar. Caiu de costas em cima dos vergalhões de ferro. Não foi necessária a hemorragia, tampouco o tétano, um dos vergalhões transpassou-lhe o coração, a morte foi praticamente instantânea.

De fato, o telefonema trazia notícias dela.

Era da delegacia, haviam encontrado sua Harley Davidson Softail Deluxe que ele tanto amava, que ele economizou a vida inteira para poder comprar, e que, por preguiça, resolveu deixá-la uns minutinhos em frente ao prédio, e quando voltou para guardá-la na garagem coberta, algum filho de uma safada de uma puta desgraçada a havia roubado. Não via sentido viver sem sua Harley. Toda a sua vida foi dedicada em poder comprá-la, e, quando pode, descuidou-se da sua amada motocicleta por alguns minutos, suficientes, contudo, para perdê-la. Não se perdoava. Não viveria sem sua Harley.

Mas poderia ter vivido ainda muitos anos ao lado dela, o ladrão a abandonou poucos quilômetros depois do prédio, tão logo a gasolina acabara.

Entretanto, agora ele morreu, e a bela Softail Deluxe ficou viúva.

Agora, quem sente saudades é ela. Sente muita saudades dele, tadinha, pois sabia o quanto ele a amava. Outro jamais a amaria com tamanha intensidade.

Por que, talvez você não saiba, motos são motos, Harley’s, não. Harley’s são diferentes.

Harley’s têm sentimentos.

Um comentário:

julie disse...

saudade é de ti.